"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

12 agosto, 2007

Morcegos Negros

Por Eduardo Macedo de Oliveira

Monteiro Lobato é considerado o maior escritor da literatura infanto-juvenil brasileira, e um dos mais importantes escritores da América Latina e do mundo. Ele nasceu a 18 de abril de 1882, na cidade de Taubaté (SP) e morreu no dia 04 de julho de 1948, vitimado por um derrame. Um dia ele disse: "Um país se faz com homens e livros".
Recebi um presente do notável e estimado mestre, José Olympio de Freitas Azevedo: um livro. Intitulado “O operador: como (e a mando de quem) Marcos Valério irrigou os cofres do PSDB e do PT” (Editora Record, 2006, 250 páginas), o seu autor, Lucas Figueiredo, mineiro nascido em Belo Horizonte, autor de dois outros livros-reportagens, Morcegos Negros (2000) e Ministério do Silêncio (2005), vencedor por duas vezes do Prêmio Esso de jornalismo, relata como se configurou o financiamento das campanhas para governador de Estado de Minas Gerais e Presidência da República, em especial, nos períodos entre 1994-1998 (Eduardo Azeredo) e 1994-2006 (FHC, Lula).
Coincidentemente, o autor já tinha tratado sobre o tema, com o livro Morcegos Negros, que desvendava também os mecanismos de financiamento da campanha eleitoral de Fernando Collor (1990-1992).
Escrito com uma implacável clareza e municiado de dados e elementos inéditos, o autor revela-nos o submundo, perverso e nauseante do modus operandi daqueles que desejavam conquistar (ou apoderar-se) do poder público, leia-se governo de Estado e União.
Dois objetivos. De uma lado, a conquista do poder (a qualquer preço), de outro, a conquista de vultosos recursos financeiros, motivaram a alquimia e criação de mecanismos para camuflar a prática do caixa 2 nas campanhas eleitorais.
Políticos, banqueiros, empresários, entre outros, formavam um rede de relações e negociatas, que não se esgotavam nas campanhas políticas, mas que se prolongavam, em caso de sucesso, na manutenção da boa governança durante os mandatos. A prestidigitação era complexa, porém, às vezes, até patética. Mas obtinham êxito, mesmo que temporariamente.
Mas como existe um ditado, não existe crime perfeito, um dia, inevitavelmente, emergiria um rastro da cadeia produtiva da esperteza, da ambição inesgotável e desenfreada pelo poder ou dinheiro.
Mas não nos iludamos. Existem outros atores, que quando acionados, também se utilizam de ações ilícitas para, paradoxalmente, denunciarem os mesmos, e assim, atingirem os seus objetivos igualmente perversos. Como exemplo, o recebimento da propina pelo agente dos Correios, Maurício Marinho, em 2004. O vídeo, amplamente divulgado na mídia nacional, revelava um grão de areia da cadeia corruptora estabelecida no interior dos Correios, na verdade, fruto de uma refinada operação, serviria, em mãos certas, para criar um verdadeiro terremoto nos meios políticos.Democracia? Sim, indispensável, mas não como um simulacro. Corrupção? Inevitável, mas não como uma regra. Segundo o autor, o Brasil é um país que vive sem heróis, mas não vive sem vilões.

01 agosto, 2007

Uma ponte para a liberdade e o conhecimento

Por José Pacheco

Desde que se aposentou no ano passado, o educador português José Pacheco percorre instituições de ensino, difundido seus ideais de escola libertária, concretizado há mais de 30 anos na Escola da Ponte, onde foi um dos responsáveis pela implantação do modelo inovador. Sem cobrar nada, relata suas experiências como coordenador da instituição, que até hoje surpreende educadores mais conservadores, tanto pela inovação pedagógica quanto pelo desempenho de seus alunos.
Instituição pública, a Escola da Ponte fica em Vila das Aves, em Portugal. Atualmente, conta com 160 alunos e 29 orientadores educativos. Criada em 1976, tornou-se famosa ao propor uma educação calcada na solidariedade, responsabilidade e autonomia. Para tanto, os alunos formam grupos heterogêneos, não estando classificados por turmas nem por anos de escolaridade; não há lugares fixos nem salas de aula e a escola encontra-se numa área aberta. Não há um professor encarregado de um grupo. Em vez disso, todos os alunos trabalham com todos os professores.
Numa prática diária de gestão democrática e participativa, são realizados debates e assembléias regulares entre alunos, pais, funcionários e professores. A cada ano, a comunidade escolar decide direitos e deveres que consideram fundamentais para aquele ano.
Há também dispositivos pedagógicos, como "Eu já sei", que estimulam a autonomia dos alunos, que se apresentam quando se sentem preparados para a avaliação. A solidariedade é estimulada através de mecanismos como "eu posso ajudar" e "eu preciso de ajuda", que estimula a troca de conhecimentos dos alunos entre si e entre os professores.
Autor de livros como "Quando eu for grande, quero ir à primavera", "Sozinhos na escola" e "Caminhos para a inclusão", cujos direitos autorais são doados para a Ponte, José Pacheco é especialista em Música e em Leitura e Escrita, mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Em entrevista à FOLHA DIRIGIDA, o educador defende mudanças na escola, analisa a educação brasileira e expõe seu ponto de vista sobre uma das polêmicas do momento: a progressão continuada.

Como surgiu a Escola da Ponte?
José Pacheco - O projeto que modificou a Ponte tem eixos bem definidos por uma pequena equipe de trabalho em 1976, que eram os mesmos valores que norteavam os trabalhos de muitos professores, nos quais eu me incluía. E que vem de muito antes, no final dos anos 60. Porque a Ponte é uma construção de um coletivo. É o coletivo que assegura o projeto e continua a assegurar agora que não estou lá. Mas vem de uma história de vida individual, pessoal. Não creio que tivesse acontecido algo, como aconteceu, se um "louco" não tivesse aparecido. E esse louco fazia parte de múltiplos movimentos sociais e políticos. Participei de tudo o que foi reação ao fascismo de Salazar, à Ditadura. E esse projeto da Ponte nasceu com características ideológicas de democratização e de esquerda. Embora hoje eu não possa atribuir-lhe uma colocação partidária. Ideologia tem sempre. Mas eu diria que hoje há pessoas de esquerda à direita, de todos os partidos, trabalhando na Ponte. E acho que assim é que deve ser. Mas naquela altura era nitidamente algo que vinha contra os resquícios de 48 anos de Ditadura tirana.

A Escola da Ponte atende a quais níveis de ensino?
Atualmente, a Ponte atende ao ensino fundamental, que no Brasil corresponderia ao nível da 1ª a 9ª série. Provavelmente, já nesse ano, introduziremos o jardim-infantil. Mas nós somos muito lentos em criar as coisas. A Escola da Ponte começa atendendo de 1ª a 4ª séries do ensino fundamental. Levamos mais de 20 anos para criar o segmento que vai de 5ª a 8ª série. E agora está a levar de cinco a dez anos para criar o jardim-infantil. É muito lento porque as mudanças em educação tem de ser lentas, ou está tudo errado. As mudanças em educação devem ser muito bem fundamentadas teoricamente, têm de ser muito bem elaboradas em termos de preparo técnico, científico, ideológico etc. Eu costumo dizer que educação é um trabalho mais sutil do que o de um ourives. Nada pode falhar. É como andar num trapézio sem uma rede. E o falhar é prejudicar muitas crianças e jovens. E, possivelmente, daqui a cinco ou dez anos, teremos o ensino médio e a formação de professores integrada na Ponte.

Como a Escola da Ponte funciona fora do esquema seriado, de disciplinas e com alunos de faixa etária diferentes estudando juntos?
Eu fico perplexo é como tudo funciona em torno de classes homogêneas, com grupo etário igual, com série, ciclo, aulas, provas que são coisas obsoletas, tralha que não serve para nada. Estou a falar de uma prática teorizada que corresponde a resultados muito melhores do que os da escola que tem séries... E acolhemos os jovens que aquelas escolas que têm séries e provas rejeitam. Eles vão para a Ponte e lá se transformam nos melhores alunos que o meu país têm. Quando sublinho este aspecto é para mostrar que a perplexidade que os outros têm em relação à Ponte tem relação àquilo que é menos importante, que é não ter disciplina, horário, aula, não ter diretor, não ter livro de ponto, não ter prova, não ter cartilha. Eu não sei se uma escola para ser melhor tem forçosamente de deixar de ter aula, turma e série. Não sei. O que eu sei para corresponder a mudança que seria necessária, já há mais de 30 anos, nós tivemos de acabar com aquela organização obsoleta que ainda hoje as escolas não mudam. O que justifica que haja uma primeira série com todos os alunos com sete anos de idade? Se alguém me provar que deve haver série, turma, horário igual para todos, se alguém conseguir me explicar isso, calo-me para sempre.

E como é o cotidiano de um aluno da Escola da Ponte?
No dia-a-dia do teu trabalho não fazes exatamente o mesmo que fazes o teu colega de trabalho, fazes? As características do teu trabalho são as mesmas de uma empresa que está ao lado da tua? Não são. Tu trabalhas com pessoas apenas da tua idade? Não podes trabalhar com pessoas com um ano a mais ou um ano a menos? No teu trabalho não vais aprendendo no que vais fazendo? Tu não fazes a tua gestão de tempo? Tu não exerces a tua cidadania e não alguma cidadania abstrata? Se tu te planejas, te orientas, geres o teu espaço, o tempo, tua agenda, só fazendo isso é que tu reúnes competências nesse domínio. Então, os nossos alunos fazem justamente isso. A partir daquilo que eles sabem que têm de aprender, e é toda a grade curricular, com certeza. E muito mais.

Então, como é a grade curricular?
Fala-se da grade curricular como um conjunto de conteúdos ou competências ou destrezas no domínio cognitivo, quase sempre. Mas falo também do domínio afetivo, emocional, estético, sócio-moral, numa educação integral e ecológica. E isso não é possível numa escola com aula, série, horário igual para todos, série igual para todos, com a avaliação que se faz. Não é possível. A escola que hoje temos nem precisa de argumentação científica para ser desconstruída. Basta o exercício do bom senso.

E como as crianças se orientam nesse contexto?
Normalmente, naturalmente. E não de uma forma abstrata, única, homogênea, como se faz na maioria das escolas. E os trágicos resultados estão aí. O aluno na Ponte parte de questionamentos, sabe o que tem de apreender, faz os seus projetos com os outros, tem os grupos onde pode trabalhar, tem espaços na escola para educação artística, lógica matemática, lingüística, onde ele pode quando quer, quando precisa, estar com outros. E os outros podem ser vizinhos, professores, educadores oficiais, podem ser pais e mães, professores tutores, um laboratório, um centro cultural. Então, faz-se os planos quinzenais, depois o plano diário e os alunos desenvolvem suas atividades. Avalia-se quando o aluno é capaz de mostrar que adquiriu uma competência, que atingiu um objetivo, que aprendeu um conteúdo. É esse o jogo social que jogam lá, que é o mesmo que fazem cá fora. Me perguntam: educais crianças e jovens para a cidadania? Eu respondo: não sei o que é educar para. Sei o que é educar na cidadania. Nem sei o que é educar para o trânsito ou para a afetividade. É educar na afetividade, no exercício de uma liberdade responsável, na manifestação madura do afeto.

E se as crianças não quiserem estudar?
No modo de trabalho das escolas tradicionais as crianças não têm autonomia e nunca vão ter. E são os adultos que nós conhecemos aí fora: no espertismo e no "salve-se quem puder". É essa a questão que está em jogo. Eu não digo que a criança deva fazer tudo o quer, nem que só se deve dar à criança o que ela quer. A escola é um espaço e um tempo de esforço e trabalho. A escola é um lugar onde se pratica o lúdico, que é a característica básica da criança e do adulto plenamente realizado. O que a criança vai fazer na Ponte não é o que quer, é o que supostamente a escola espera que ela faça, mas a partir daquilo que para ela tem significado. Ela brinca aprendendo e aprende brincando. Mas é uma brincadeira séria. A coisa mais séria na vida é brincar: brincar com as idéias, brincar com os fatos. Quando nas outras escolas as crianças entram e são obrigadas a ficar uma hora ouvindo aquilo que não faz sentido algum, dito igual para todos, é lógico que ela procura fugas mentais, elas querem estar brincando, não querem estar ali. Na Ponte, a criança brinca com a pesquisa e aprende. Ela brinca com os outros e aprende com os outros. E aprende muito mais rápido do que as crianças que estão nas escolas onde supostamente estão aprendendo nas aulas.

E como é o trabalho desenvolvido com os alunos que apresentam problemas em outras escolas?
Quando uma criança ou jovem jogado fora de outra escola para a Ponte — esses são casos muito particulares, mas são muitos —, essa criança não entende a linguagem da liberdade. Ela confunde a liberdade com licenciosidade, com não fazer nada ou com fazer besteira, que é o que ela fazia na escola de onde veio. Essas crianças vêm expulsas das outras escolas por baterem em professores, por fugirem, por não aprenderem. Essa criança não sabe escolher. Está destruída. É preciso, antes de mais nada, devolver-lhe a auto-estima e a idéia que ela é uma pessoa na relação com as outras pessoas. E aí não é ela que escolhe o que quer fazer, quem escolhe é o professor tutor que a acompanha. Ela faz o que o adulto professor manda enquanto não for livre, ou seja, enquanto não entender que é uma pessoa, na relação com outras pessoas, que os outros também são pessoas. Isso pode levar muito tempo. Leve o tempo que levar, conseguimos sempre esse objetivo: tratá-los como gente.

Como a dimensão do afeto é introduzida no ambiente escolar?
Essas escolas que nós temos por aí têm profissionais maravilhosos, competentes, mas que não fazem o que é preciso. Essa escolas trabalham de modo errado, quando o aluno não entra naquela abstração que é definida como aluno. Fortalecem-se alguns apêndices da escola: departamento de psicologia, planos educativos individualizados - como se nós não fôssemos serem individualizados; somos seres únicos e irrepitíveis. Arranjam gabinetes especializados. Dizem que a criança é hiperativa. São desculpabilizações. Quando querem educar para a cidadania, criam mais uma disciplina. Então, a criança vai ser cidadã uma hora por semana, por que nas outras horas ela não é. Como se pode ser cidadão durante uma hora por semana, se na aula de Matemática não se é, e na de Português também não? Nós introduzimos a idéia de que é necessário que a escola seja uma escola de pessoas. Que haja relação entre elas. Porque a aprendizagem não está centrada no professor e nem no aluno: está centrada na relação. Na relação estão presentes o afeto, a emoção. Tudo isso está presente. Os professores dizem: eu preparo a aula para o aluno médio. E se o aluno faltar a escola nesse dia, vais dar aula para quem? O que é isso de aluno médio? Isso não existe. Isso é um vazio constitutivo afetivo que se constrói e mantém nas salas de aula. Não há relação alguma. Porque não existe relação de um para dez, de um para 20, de 20 para dois.

Nesse sentido, qual é o diferencial da Escola da Ponte?
Na Escola da Ponte não fazemos mais do que concretizar esses valores: solidariedade, autonomia e responsabilidade. Esses três valores só podem concretizar-se na relação. Eu individualmente sou responsável pelos atos do coletivo a que pertenço. E é essa cultura de solidariedade que é preciso desenvolver e traduzir em dispositivos pedagógicos que, nesse caso, são as crianças que os criam, como "eu preciso de ajuda", "eu posso ajudar", "eu já sei". São eles que os criam com a ajuda dos professores. Caso contrário, não valeria a pena haver escola.
Em linhas gerais, como deve ser a escola do século XXI?
Hoje, onde é que se aprende? Em todo o espaço de tempo. E onde se aprende menos é nas escolas, porque tudo aquilo que se "aprende nas escolas" não é mais do que acumulação cognitiva inútil, que se vomita no vestibular e se esquece a seguir. Portanto, é algo que pressupõe perda de tempo e investimento. A escola que temos mete na cabeça das pessoas a Matemática, a História, sem sentido algum. E quando não tem sentido nenhum, decora-se e esquece-se. É perder tempo em nove anos de fundamental e três anos de médio, decorando coisas que depois vais esquecer. Mas se as coisas forem apreendidas, se fizerem sentido, essas ficam, porque fazem sentido. Essas coisas que são acumuladas, são inúteis, não contribuem para aperfeiçoar em nada o ser humano. Eu defendo uma educação integral, ecológica.

E como seria essa educação?
É aquela em que cada professor, grupo de professores, comunidade, no seu espaço e no seu tempo, venha a fazer em substituição. Não há uma receita. Sou contra as modas pedagógicas e os modelos. O que peço é que as pessoas pensem com a sua cabeça. Não se deixem possuir por discursos alienantes, sejam eles políticos ou pseudo-científicos.

Os alunos, quando saem da Ponte, sentem dificuldades em se enquadrar no sistema de ensino regular, seja no ensino médio, seja em universidades?
Nossos alunos são preparados para tudo, para saber estar em qualquer lugar, mesmo em lugares obsoletos. Eles sabem autogerir-se, autoplanejar-se, gerir seu tempo. São capazes de andar a toque de sineta em outra escola. Têm de respeitar as regras onde eles chegam. Não devem ser extraterrestres. Não temos prova na nossa escola, mas temos uma versão mais rigorosa. Não temos classificações. Todas as escolas portuguesas, no fim do trimestre, dão notas aos alunos. Quando um jovem vai para outra escola, apesar de não termos série, ele leva um processo pessoal onde está a série onde ele vai. Apesar de não darmos classificações, eles levam as classificações por trimestres, com critérios de avaliação e portifólio de avaliação anexo. Não há transição traumática. Temos ex-alunos com 45 anos de idade. Esses alunos são seres bem-integrados socialmente, participam da política, são críticos, respeitam os outros... São pessoas, são gente. Quem me substituiu quando saí da Ponte foi um ex-aluno meu.

O sr. é a favor da progressão automática? Por quê?
Sim. Já não gosto do termo automática, que tem a ver com autômato. Eu gosto mais do termo avaliação formativa, que se pode depois transformar em avaliação somativa e dar, ou não, origem a uma classificação. A pergunta básica é: poder-se-á encarar a idéia de uma progressão continuada mantendo-se o regime de série? A resposta é não. No Rio de Janeiro, qual é o sistema vigente? Há ciclos?
Muitos educadores são a favor dos ciclos, mas acreditam que a rede municipal não dispõe da devida infra-estrutura para implementar o sistema com eficácia. O sr. concorda com eles?
Não estou de acordo com eles. No Rio de Janeiro, como em todo o Brasil, que estou visitando há cinco anos e meio e onde conheço centenas de escolas, eu pergunto onde é que está o sistema de ciclos? Todas as escolas que eu conheço trabalham em série. Se há regime de série, e é esse regime que está aí. Apesar de muita coisa que se tem publicado em decreto-lei, o que está aí é série. Pode estar é travestizada de ciclo. Olha para o manuais que as crianças têm? Estão em série.
Muitos professores questionam o sistema ciclos argumentando justamente que o livro didático, fornecido pelo poder público, está pautado no regime seriado.
Se o sistema que existe no Rio e no Brasil é o de série, então, reprove-se o aluno na 1ª, na 2ª, na 3ª e na 4ª série. Faça-se a reprovação. Porque andamos a fazer o faz-de-conta da progressão automática. Como é que se pode imaginar que no sistema de séries haja uma criança que chega à 4ª série sem saber ler? É um crime. Passar a criança da 1ª para a 2ª série sem saber ler é um crime.

Então, o sr. é contra a progressão continuada?
Não, sou a favor. Porque para abrir a progressão continuada ou automática não pode ser se não sem série e sem ciclo.

Como o sr. avalia a situação da educação brasileira hoje?
Em Portugal, as coisas estão um pouco mais amenas no sentido socioeconômico, mas em termos educacionais estão iguais. No Brasil sente-se mais porque as assimetrias, as desigualdades são muito maiores. Em termos pedagógicos, a situação é semelhante. A crise da educação no Brasil é a crise da educação mundial. Nada se diferencia no essencial. A escola que se mantém é tributária das necessidades sociais do século XIX. É uma escola que se tornou obsoleta, que não acompanha nada. Toda a literatura que existe do campo das ciências da educação, pelo menos, desde 100 anos, não é mais do que uma repetição, da repetição, da repetição de algumas matrizes. E é literatura de ficção científica. O que se faz hoje são livros de ficção científica, porque nada do que está nos livros existe na prática. Existe uma distância enorme entre teoria e prática, quando as coisas deveriam estar juntas. Estão separadas porque existe o sétimo céu dos professores universitários, que se entretêm a fazer teses, que acabam sem aplicação prática. E existem os práticos que ignoram as teorias que esses professores altamente especializados produzem.

E como é possível repensar esta escola?
Sentimos, como professores, problemas de ensino. A partir desse problema, há uma imensa bibliografia que pode ser consultada; há universidades onde esses problemas são tratados; há escolas que podemos observar; há professores com os quais nós podemos partilhar. Vamos para a internet, para as escolas, para os livros. Encontramos soluções que não são soluções avulsas. Não se trata de pegar uma teoria e pô-la na prática. Trata-se de ler muito, refletir muito, de ler criticamente e de partilhar a informação, de transformá-la em teoria pessoal. E depois, diante de um problema concreto, descobrir como é que eu vou mudar a prática com o contributo da teoria. E, a partir da introdução dessas mudanças, que devem ser explicadas aos pais, vamos ver se dá resultado ou não. O que defendo é que, quando há uma dificuldade, devemos procurar os amigos. O que fazemos na Ponte é um exercício permanente de questionamento e de transformação de minha pessoa e de transformação interpessoal. Não há receitas: há pessoas.

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