"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

05 setembro, 2005

A hora da tristeza

Por Rubem Alves

O meu celular tocou. Era o meu filho Sérgio. "Pai, estou a caminho de Atibaia. Antes da cidade há um mastro alto com uma enorme bandeira do Brasil. A bandeira está murcha, caída, enrolada no mastro. Tive a impressão de que ela estava enrolada no mastro para esconder a vergonha. Agora só se fala sobre essa vergonheira da corrupção. Mas há tantas coisas bonitas acontecendo. Parece que ninguém vê. Ninguém fala nelas. Será que você pode fazer alguma coisa?"Não havia raiva na sua voz. Era apenas tristeza.O que posso fazer é coisa fraca -escrever. Disso sabia o Vinícius, que disse ter uma "imensa piedade da sua inútil poesia"...A primeira reação do país foi o espanto. O espanto faz o pensamento parar. O susto toma conta de tudo. O que estava acontecendo era o inimaginável.Passado o espanto inicial, veio a indignação. Raiva. Como se, de repente, descobríssemos que a esposa pura (e como se gabava da sua pureza!) era uma prostituta. A imagem é bruta? Tirei-a do Antigo Testamento, do livro do profeta Oséias.Mas a voz do meu filho sugeriu que a alma do povo estava entrando em um outro momento. Sem nada poder fazer com a raiva, a alma se dá conta da sua impotência e começa a chorar.Choramos... D. Miguel de Unamuno, filósofo espanhol que Guimarães Rosa muito amava, disse que "o que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multidão açoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia". Creio que ele me permitiria uma inversão. Eu diria: "Um lugar aonde se vai chorar em comum, qualquer que seja, transforma-se em um templo". Em que templo enorme se transformou o Brasil! Só nos falta um poeta que nos componha um Miserere para cantarmos!Até agora, as sucessivas safadagens que vieram ao conhecimento público envolvendo políticos e empresas só provocaram indignação e raiva. A indignação e a raiva tornam-nos guerreiros. O guerreiro deseja a vingança. Mas, quando a indignação e a raiva se descobrem impotentes, deixamos de ser guerreiros e nos tornamos pranteadores.Nossa alma estava melhor nos anos de ditadura. Computados os seus horrores de torturas e assassinatos, brilhava em nós "essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança". (Vinícius). Por causa da esperança, os poetas cantavam canções que do terror faziam brotar a beleza: "Apesar de você, amanhã há de ser novo dia"... Havia beleza e, por isso, a alma cantava. Mas agora já não há beleza. A alma não canta mais.Desisti de acompanhar os noticiários. Eles não me ajudam em nada. Só fazem aumentar a consciência da extensão das metástases.Parece existir um acordo: a corrupção não é a coisa. A corrupção é apenas um sintoma da coisa, pústulas fétidas de uma doença que circula no sangue, como se fosse varíola. Varíola não se cura raspando-se as pústulas. É preciso ir ao sangue, que é o lugar donde as pústulas nascem. Isso só com uma reforma das leis que regem o jogo da política.Concordo. Mas não sei quem fará essa mudança. Não acredito que lobos e raposas sejam capazes de abandonar sua dieta carnívora e aprovar uma dieta vegetariana. O profeta duvidava e perguntava: "Pode o tigre mudar suas listras?". Mas a sua pergunta já continha a resposta: o tigre não pode mudar suas listras... Pessoalmente, duvido de que o Congresso Nacional seja capaz de fazer a reforma de que necessitamos.Eu acreditaria, sim, se a lei da dita reforma começasse com essa afirmação:"Nós, senadores e deputados, representantes do povo, portadores do seu sofrimento e de suas esperanças, por este ato declaramos abrir mão de todos os privilégios que nos colocam acima do povo. De hoje em diante, as leis que determinam os nossos direitos serão as mesmas leis que determinam os direitos de todos os cidadãos, os mais humildes. Declaramos, portanto, abolidas todas as leis que nos colocam acima do povo. Estamos proibidos de legislar em causa própria. Jamais votaremos os nossos salários porque o povo não pode votar os seus próprios salários".O que faz um povo? Santo Agostinho dizia que um povo acontece quando as pessoas se unem em torno de um mesmo sonho. É preciso devolver ao povo a capacidade de sonhar, para que ele volte a ser povo. Mas, para que isso aconteça, é preciso que o povo tenha confiança nos representantes que elegeram. Mais do que isso: que se orgulhem deles.Faço minhas as palavras de Unamuno: "Pelo que me diz respeito, jamais de bom grado me entregarei nem outorgarei a minha confiança a um condutor de povos que não esteja penetrado da idéia de que, ao conduzir um povo, conduz homens, homens de carne e osso, homens que nascem, sofrem e, ainda que não queiram morrer, morrem; homens que são fins em si mesmos e não meios"...Não sei fiz o que meu filho pediu. Fiz o melhor que pude fazer com a minha inútil poesia...

Rubem Alves, 71, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e colunista do caderno Sinapse. Autor de, entre outras obras, "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus, 2001).

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo, 04/09/2005