"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

01 setembro, 2005

A privatização da política educacional: dez questões

Por Pablo Gentili

Bons diagnósticos não produzem necessariamente boas políticas; embora, maus diagnósticos produzam sempre más políticas. O mesmo pode-se dizer de qualquer estratégia de resistência ao projeto neoliberal atualmente em curso. Um bom balanço do rumo assumido pelos governos neoliberais não garante o fortalecimento das lutas democráticas contra as políticas de ajuste e suas conseqüências discriminadoras e excludentes. Todavia, um balanço errado, sem lugar a dúvidas, nos afasta de qualquer possibilidade de resistência social efetiva a essas políticas.
Um "bom" exemplo de mau diagnóstico são alguns dos estudos que analisam a privatização na área educacional. Neles o conceito de "privatização" costuma ser utilizado como sinônimo de "afastamento" do Estado, processo derivado da redução do gasto público social destinado ao financiamento dos serviços educacionais. Resulta evidente que, embora a privatização da educação está vinculada ao ajuste e diminuição do investimento estatal, ela vai muito além desse objetivo, podendo inclusive ser contrária a ele: a privatização educacional pode "conviver" com a manutenção e, em certas áreas, com o aumento do gasto público destinado ao setor. Para melhor compreender este processo, enunciarei dez breves questões, algumas de caráter geral, outras mais específicas:
1. A privatização das políticas sociais não decorre de decisões econômicas baseadas numa suposta racionalidade do gasto público. Trata-se, pelo contrário, de uma decisão política sustentada na necessidade de gerar uma profunda redefinição do papel do Estado e uma redistribuição regressiva do poder em favor dos setores mais poderosos da sociedade.
2. Nesse sentido, a privatização educacional não tem se traduzido necessariamente numa redução dos recursos estatais destinados ao financiamento dos serviços escolares, senão numa realocação de verbas que, em alguns casos, têm inclusive sofrido um significativo aumento (como as políticas de avaliação; as reformas curriculares; a modernização periférica do sistema escolar mediante a compra de computadores e antenas parabólicas; bem como o financiamento público de ações assistencialistas e "filantrópicas" desenvolvidas por entidades da sociedade civil, numa esquizofrênica lógica que, como bem caracterizou Paulo Arantes, leva os governos a tornarem-se ONGs e as ONGs tornarem-se entidades governamentais).
3. Privatizar significa, de modo geral, delegar responsabilidades públicas para entidades privadas. Embora uma conseqüência imediata do processo privatizador seja o afastamento do governo na prestação dos serviços educacionais, com o decorrente aumento da oferta privada nesse campo, a dinâmica de delegação de responsabilidades públicas precisa do Estado e, de forma mediata, o fortalece. Assim, o que está em jogo não é o "afastamento" da ação estatal senão sua reconfiguração.
4. O cenário criado numa conjuntura onde o Estado se torna uma instância promotora da privatização no campo social, por um lado, enfraquece as formas tradicionais de clientelismo político, mas, por outro, o redefine estimulando novas dinâmicas clientelistas vinculadas ao poder que concentram as entidades privadas na esfera educacional (corporações de ensino, fundações, institutos empresariais, consultoras, etc.).
5. Os organismos financeiros internacionais desempenham uma função central na promoção e estimulo às políticas de privatização tanto no campo econômico quanto no campo social. Todavia, isto não deve nos conduzir ao errado argumento de que Estado «sofre» (como entidade externa e subjugada) os efeitos socialmente devastadores da crise da escola pública. Em outras palavras, a natureza do processo privatizador e suas conseqüências excludentes não estão "fora" do Estado, senão dentro mesmo da estrutura que tem definido sua construção histórica e sua especificidade na atual conjuntura.
6. Longe de resolver ou de corrigir a distribuição desigual dos bens educacionais, a privatização tende a aprofundar as condições históricas de discriminação e de negação do direito à escola a que são submetidos os setores populares. Uma das evidências desse processo é a cristalização das dinâmicas de segmentação e diferenciação no sistema escolar (escolas ricas para os ricos, escolas pobres para os pobres).
7. O crescimento da oferta privada se justapõe a essa dinâmica, desenvolvendo formas internas próprias de segmentação e diferenciação. Cria-se, assim, um subsistema particular profundamente heterogêneo no que se refere às condições de qualidade na prestação do serviço. Desse modo, a privatização da educação também promove a estruturação de uma oferta privada pobre para os pobres.
8. A polarização social e o agravamento das condições de exclusão sofridas pelos setores populares (produto da concentração de renda, da deterioração das condições de vida e da precariedade em matéria de emprego) tendem a gerar uma série de demandas educacionais incompatíveis com o formato das políticas sociais em curso e que, ou bem são desconsideradas, ou bem são situadas na esfera de políticas focalizadas de curto alcance.
9. Neste sentido, o assistencialismo focalizado promovido hoje pelos governos neoliberais constitui-se numa das dimensões que assume o processo privatizador no campo social e, especificamente, no campo educacional. Sob a influência dessas políticas, estimula-se uma série de ações delegatórias à sociedade civil (como a "adoção" de alunos e escolas), consagra-se o discurso oficial acerca das virtudes do Terceiro Setor, incentivam-se atividades de voluntariado e promovem-se iniciativas de filantropia empresarial destinadas a substituir ou a complementar as responsabilidades que os governos recusam, ou assumem apenas parcialmente.
10. Em suma, a privatização no campo educacional tem promovido a emergência de novas formas institucionais de prestação de serviços que conduzem a uma redefinição do espaço público (como esfera não-estatal), do sentido atribuído ao direito à educação como direito universal, tanto quanto da própria noção de cidadania. Muito mais que a grave e sempre discriminatória redução do gasto público...

Fonte: Boletim de Políticas Públicas, nº 1, Laboratorio de Políticas Públicas
http://www.lpp-uerj.net/olped/centro_publicacoes_ver.asp?titulo=Boletim%20de%20Políticas%20Públicas&cod=70&tipo=0