"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

09 setembro, 2005

Essa raça

Por Verissimo

A desunião das "esquerdas" faz parte do folclore político brasileiro. A velha piada, que só variava na escolha das etnias - "Dois espanhóis (ou dois judeus), quatro posições" - se adapta a esta nossa tradição: uma esquerda, 17 tendências. A divisão interna no PT é quase uma paródia disto. Nenhum outro partido conhecido oferece tal possibilidade de sintonia ideológica fina. Há faixas para todos os gostos e subfaixas para gostos especiais. As diferentes correntes se entrechocam e o resultado é sim, como gostam de dizer, saudavelmente democrático - e mortal. Explica em parte a crise atual do PT como a desconjunção das "esquerdas" explica a sua irrelevância histórica no Brasil, onde a direita sempre explorou sua suposta ameaça confiando nessa porosidade fatal.
O senador Bornhausen pode ter feito uma favor às "esquerdas" quando disse que o melhor efeito da crise seria acabar com "essa raça" pelos próximos 30 anos. Se começassem a pensar em si mesmas como uma raça contemplando a extinção, ou pelo menos de 30 anos de inexistência punitiva, "as esquerdas" talvez descobrissem como usar sua identidade comum contra o inimigo comum. E começassem, finalmente, a influir nesses eternos arranjos e rearranjos de oligarquias que passam por História, por aqui. Nada como laços biológicos para fortalecer uma união.
Enquanto a consciência de raça não vem, é incrível que ainda seja a desunião e o conflito de facções que vá decidir o futuro imediato do PT em vez do instinto de sobrevivência. Perdeu-se uma oportunidade com a rejeição do caminho apontado pelo Tarso Genro para melhorar a imagem do partido, se não para a sua regeneração. Foi a vitória não do bom senso mas de uma tendência errada. Uma das 17.
A propósito: na inauguração do governo Lula, num assomo de otimismo e bairrismo, elogiei todos os gaúchos do ministério - Tarso, Olivio Dutra, Dilma Rousseff, Miguel Rossetto - e escrevi que, se desse errado, seria culpa dos paulistas. Estou pensando seriamente em comprar um turbante e me estabelecer como vidente.

Fonte: Jornal Estado de S.Paulo, 08/09/05