"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

18 agosto, 2005

Jostein Gaarder

Autor de ' O Mundo de Sofia' volta ao Brasil com novo livro

O ex-professor de Filosofia norueguês Jostein Gaarder não se acomodou com o sucesso de livros como O Mundo de Sofia. Tem enfrentado desafios, como traduzir o conteúdo das Confissões de Santo Agostinho para adolescentes ou, no caso de A Garota das Laranjas, livro que lança amanhã, em São Paulo, associar a paixão de um homem à investigação do cosmo pelo telescópio Hubble. Seu 14º livro é comovente. Narra a história de um adolescente de 15 anos que recebe uma carta de seu pai morto, extraviada 11 anos antes. Nela, ele conta como conheceu a garota de seus sonhos. Gaarder, que participa de vários encontros pelo Brasil este mês, falou ao Estado, por telefone, de Oslo, onde reside.
Desde seu primeiro sucesso, O Mundo de Sofia, você escreve livros segundo o ponto de vista do adolescente. Por quê?
Escrevo livros para jovens, mas são os adultos que mais lêem. Acredito que o mundo está precisando de boas histórias, sejam elas histórias infantis consumidas por adultos ou vice-versa. Estamos atrofiando nossa imaginação. Tento, portanto, me comunicar com os jovens, os mais prejudicados com o isolamento que a tecnologia impõe, afastando o adolescente da vida comunitária que produz essas boas histórias.
É inusitado, mas A Garota das Laranjas está sendo recomendado por uma associação espírita estrangeira. Você acredita em vida após a morte?
Não, mas gostaria de não estar certo. O fato é que adoro viver. É uma lástima que tenhamos de morrer. Tenho a mesma crença do pai morto de A Garota das Laranjas. A vida continua com nossos descendentes e é preciso orientá-los. É exatamente o que faz o pai, deixando uma carta para que o filho, ao crescer, possa entender sua mensagem. Nesse sentido, talvez o livro possa ser lido como espírita, mas não deveria. É apenas uma obra sobre o diálogo. Como ele só pode ser travado entre pessoas da mesma estatura intelectual, o pai tem de esperar 11 anos para conversar com o filho. É o que pensa esse homem, que está morrendo de câncer. Nunca tive uma experiência sobrenatural, mas a palavra é fascinante. Sugere todo um universo mágico em que acreditamos quando crianças. Nesse estágio, não separamos o mundo natural do sobrenatural. Eles são iguais. A separação vem muito depois. De qualquer modo, não acredito numa revelação. O mundo já é uma revelação.
Porém, seus personagens recebem mensagens de um modo estranho. Georg, o menino de A Garota das Laranjas, acha uma carta do pai morto. Esse artifício não esconde a falta de crédito no entendimento, na possibilidade de um diálogo?
Você está certo. A comunicação, em meus livros, se dá por meio de cartas, mas devo argumentar que se trava sempre um diálogo real. Eu preciso do contraponto, para usar a linguagem musical. A dimensão polifônica é sempre melhor. Considere, por exemplo, a gravação Unforgettable com Natalie Cole e seu pai, Nat 'King' Cole. Esse registro impressiona pelo fato de sabermos que se trata de um diálogo entre a filha viva e o pai morto. Ora, uma criança jamais poderia entender o que sente seu pai, pois ela não está de posse do código da paixão nem tem a experiência de um adulto. A Natalie Cole adulta pode entender perfeitamente a gravação original e, portanto, 'conversar' com o pai. Isso justifica por que o pai de Georg, em A Garota das Laranjas, deixa a carta para ser lida pelo filho adulto.
Num outro livro seu, Vita Brevis, a mãe do filho de Santo Agostinho escreve uma carta contestando o livro mais famoso do filósofo da Igreja, Confissões. É a sua resposta à Igreja?
Sou fascinado por Agostinho. Confissões é um livro maravilhoso, mas a interpretação da Igreja é pavorosa. Ela instrumentaliza o livro. Oficialmente, se um homem e uma mulher vivem juntos sem a bênção papal, vivem em pecado, mas o fato é que Agostinho viveu com sua mulher por 12 anos - e bem -, amando-a e tendo com ela um filho que, por ironia foi chamado de Adeodato, ou seja, 'dado por Deus'. Eu vivo num país protestante e os luteranos tendem a concordar comigo. Tudo bem, Agostinho deu sua versão da história, mas quem fala pelas mulheres ou por sua mulher abandonada? Foi isso que me motivou a escrever Vita Brevis. Acho que a compaixão é o sentimento mais forte que um cristão pode experimentar.
Seu livro Ei! Tem Alguém aí? já foi comparado a O Pequeno Príncipe. Era seu objetivo emular o estilo de Saint-Exupéry ao contar a história de um ser do espaço que cai na Terra?
Fico lisonjeado com a comparação, porque gosto muito de Exupéry, mas nossas histórias só se cruzam no momento da queda do ser extraterrestre. Fiquei pensando no que teria acontecido se um meteoro não tivesse caído na Terra e matado os dinossauros. Hoje teríamos certamente dinossauros mais espertos, inteligentes. Acho que meu livro (sobre a conversa de Joe com o alienígena Mika, enquanto espera os pais chegarem do hospital com um novo bebê) deve ser lido como um conto de fadas sobre a curiosidade infantil. Ao contrário dos adultos, elas não tomam a existência como certa. Elas querem experimentar, conhecer novos mundos.
Simultaneamente ao livro A Garota das Laranjas, sua editora está relançando
O Livro das Religiões. Você tem alguma crença pessoal?
Na Índia ou no Irã, diria que sou cristão. Não necessito outra ética que não esteja na Bíblia. Jesus Cristo é muito importante para mim, mas se você me pergunta se eu acredito que ele seja o filho de Deus ou na sua ressurreição, direi que não. Como filósofo, tenho a obrigação de ser honesto. Digo, então, que acredito na vida.
Mas a vida é um processo dinâmico e um de seus personagens diz que uma pessoa disposta ao autoconhecimento deve, antes, ficar parada. Você poderia explicar o que quer dizer com isso?
A frase é de um livro que fala de um pai filósofo e seu filho, que sonha viajar. O pai o adverte que, se deixar a Noruega, ele pode se perder, reforçando a necessidade de termos raízes. A exemplo do menino Hans, acho que tenho raízes, mas também botas, o que me leva a conhecer outros países e outras histórias. Isso não significa que abandono minha identidade norueguesa ao buscar novos horizontes.
Como a literatura pode ajudar pessoas jovens a descobrir a alteridade quando a tecnologia aliena cada vez mais o indivíduo?
Sem dúvida, numa sociedade urbana como a nossa, os jovens parecem autistas. Antigamente, pais e filhos reuniam-se em torno da mesa de jantar, contando histórias uns para os outros. Porém, a velocidade da vida moderna impede esse encontro. O livro é, então, o veículo ideal para preservar a história individual e coletiva. Assim espero.

Um filósofo que se dedica ao ensino da vida para os jovens

Entre os muitos temas filosóficos do novo livro de Jostein Gaarder, A Garota das Laranjas (Companhia das Letras, 136 págs., R$ 27, tradução de Luiz Antônio de Araújo), o principal é a dificuldade que tem o narrador (ausente) de transmitir sua experiência ao filho adolescente. Trancado em seu quarto, Georg, de 15 anos, abre uma carta-testamento deixada pelo pai, morto de câncer 11 anos antes. Nela, o médico Jan Olav tenta descrever um encontro amoroso inesquecível. Há mais de 30 anos ele conheceu uma garota numa viagem de bonde, carregando uma gigantesca sacola de laranjas.
Esse encontro aparentemente banal vai mudar a vida de Jan Olav e seu filho Georg, que, coincidência ou não, acaba de fazer um trabalho escolar sobre o telescópio espacial Hubble ao ler a carta do pai, perguntando justamente como andavam as investigações fotográficas do mesmo. O médico, morto na Páscoa de 1990, talvez já estivesse doente quando a nave Discovery, que lançou o Hubble em órbita, partiu de Cabo Canaveral, em 25 de abril daquele ano. Georg cisma com a coincidência. Justamente um telescópio que tirou as fotografias “mais nítidas” do universo atrai pai e filho para uma aventura espacial e existencial às cegas.
O tema da viagem espacial como autoconhecimento já foi abordado no cinema por Kubrick, em 2001, Uma Odisséia no Espaço, mas Gaarder avança no terreno analógico. Como o Hubble, que quase conseguiu enxergar o Big-bang, a aventura amorosa do pai vai servir para que Georg não apenas descubra sua origem como o próprio mistério da vida. O médico quer legar ao filho um mundo “mágico”, onde nada do que existe é natural, mas sobrenatural – principalmente o encontro com a “garota das laranjas”.
Gaarder é perito em trocar em miúdos grandes questões filosóficas. A do adolescente atual, quase autista em sua recusa do outro, é um tema que preocupa o filósofo-escritor há algum tempo. O norueguês já contou, por exemplo, a história de um garoto, filho de pai alcoólatra, que empreende uma jornada mítica em busca da mãe desaparecida. Também explorou a necessidade que têm os adolescentes de se refugiar em fantasias extraterrestres (como em Ei! Tem Alguém aí?) para escapar ao mundo hostil do adulto. Desta vez, ele não precisou recorrer a nenhum alienígena. Bastou a figura hamletiana do pai morto.
O enigma do médico que deixa uma mensagem para ser lida pelo filho após sua morte comporta uma interpretação psicanalítica (e até religiosa), mas Gaarder prefere ficar no terreno filosófico. A questão do acaso surge tanto para o pequeno Georg como para os grandes homens que colocaram o Hubble em órbita. Não se trata de saber apenas de onde viemos. É preciso, principalmente, saber para onde vamos.

Fonte: Jornal Estado de S.Paulo, 17/08/2005