"Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito" Charles Chaplin

17 agosto, 2005

COMPRO, LOGO EXISTO

Livro "Eu S/A" descreve um mundo "privatizado" pelas grandes corporações

Hack Nike está em apuros. Assinou um contrato com a empresa em que trabalha, a Nike, para assassinar alguns adolescentes que compraram o último lançamento da companhia, os tênis Mercury.A estratégia do departamento de marketing da empresa é gerar burburinho em torno do produto e, assim, aumentar suas vendas. Mas nem tudo sai como o esperado, e uma agente, Jennifer Governo, passa a investigar o caso.Hack Nike chama Hack Nike porque num "futuro próximo" todo mundo tem como sobrenome o nome da companhia em que trabalha. É um mundo dividido entre os países aliados dos EUA e os não-aliados (como a França), liderado pelas grandes corporações, em que o governo pouco ou quase nada atua; um mundo em que os cidadãos têm de pagar para serem ajudados pela polícia.Este é o ambiente de "Eu S/A", segundo livro do australiano Max Barry. Ele já foi professor de marketing e utiliza seus conhecimentos para desencadear a história, contada a partir do ponto de vista de vários personagens.O livro tornou-se best-seller na Europa, gerou um game on-line ("NationStates") criado também por Barry, movimenta as conversas no site do escritor (www.maxbarry.com) e teve seus direitos comprados por Steven Soderbergh. Por e-mail, Max Barry conversou com a Folha.

Folha - Já teve problema por ter utilizado nomes de empresas?
Max Barry - Nunca. Talvez porque seja claramente uma história ficcional. Não estou, por exemplo, alegando que a Nike tenha como estratégia de marketing atirar em grupos de adolescentes. Ou talvez seja porque eu utilize nomes de empresas grandes, e iria pegar mal para essas corporações processar um escritor satírico. Não sei o motivo, o que sei é que continuo utilizando nomes de empresas em meus livros, e elas continuam não me processando.
Folha - Você escreveu o livro em 2000. De lá para cá, o modo de atuação das corporações mudou?
Barry - Escrevi "Eu S/A" entre 2000 e 2001. A grande mudança, pelo menos nos EUA, é que, após o 11 de Setembro, o governo adquiriu poderes maiores. No livro há quase uma guerra entre as corporações e o governo, mas o que vemos no mundo hoje é outra coisa: grandes empresas, como a Halliburton, estreitam relações com o governo até um ponto em que não distinguimos onde um termina e o outro começa.
Folha - O livro é ambientado num "futuro próximo". É realmente um "futuro próximo" ou seria um "quase presente"?
Barry - É mais um "presente alternativo". Queria escrever uma história que fosse ambientada num mundo diferente do nosso -plausível, mas diferente- e não queria perder tempo com os avanços tecnológicos de um livro ambientado no futuro. Então peguei a situação atual e mudei algumas coisas estruturais. Mas os editores preferem o "futuro próximo" porque é um jeito mais fácil de explicar do que "ambientado no presente, mas com algumas diferenças sociais importantes".
Folha - As grandes empresas são muito criticadas hoje por vários setores: ou pelos ambientalistas, ou por pagarem salários muito baixos, ou pelas táticas agressivas de marketing. Você vê nessas corporações um poder de influência maior do que o dos próprios políticos?
Barry - Há uma grande diferença entre os malefícios causados por corporações e os por políticos. Quando temos corrupção em setores do governo eleitos pelo povo, é porque alguém deliberadamente decidiu agir de forma antiética -abusando do poder que lhe foi concedido. Mas com as empresas, nós basicamente estamos dizendo a elas: "Façam o que for necessário para ganhar o máximo de dinheiro que conseguirem". A ganância corporativa nunca deveria nos surpreender, porque é inerente a esse sistema. O problema com as corporações é que elas são formatadas como instituições puramente capitalistas, mas depois elas passam a se alimentar do lobby político. É uma situação muito ruim quando você tem grandes empresas, cujo objetivo único é aumentar seus lucros, dizendo aos políticos os tipos de lei que as beneficiarão.
Folha - Você estudou e deu aulas de marketing em faculdades. Essas táticas descritas no livro foram aprendidas na escola?
Barry - Interessei-me por marketing na faculdade, mas utilizei as técnicas aprendidas principalmente em "Syrup". "Eu S/A" é mais o que os marqueteiros fariam se eles não tivessem de se preocupar com leis.
Folha - Muitas vezes você é comparado a Chuck Palahniuk e Naomi Klein, pelos assuntos abordados. Eles são uma referência para você?
Barry - Adoro os dois, e foi uma surpresa quando começaram a me comparar a Chuck Palahniuk. Gosto de seus livros, mas nunca vi tantas similaridades entre a gente. Ele é como um ícone desse tipo de ficção dark, bruta. Minhas histórias são menos sombrias.
Folha - Seu livro descreve uma sociedade assustadora, mas com bastante comédia. A sátira deixa o mundo menos sombrio?
Barry - Já ouvi opiniões diversas: alguns dizem que a sátira ajuda as pessoas a se preocuparem mais com o mundo; outros afirmam que uma piada pode fazer com que alguém não dê a devida importância a um problema. O que cada escritor busca é mostrar um pequeno pedaço do mundo, ou uma nova forma de olhar para ele.
Folha - Em "Eu S/A" vemos um mundo privatizado, em que a polícia só atua quando o cidadão a paga, em que pessoas têm sobrenomes de empresas... Você acredita que o capitalismo dos EUA caminha para esse tipo de situação? Você já foi chamado de comunista?
Barry - Às vezes, mas apenas por pessoas que têm problemas em entender que há outras camadas em política além das extremas-direitas e esquerdas... Acho que o mundo se tornará mais capitalista e que algumas das situações que parecem irreais no livro -como ter de pagar por uma ambulância ou levar o filho para estudar numa escola criada por uma empresa- não demorarão muito para tornarem-se realidade. As corporações acumularam um nível de poder e riqueza tão grandes que é impossível acabar com isso.
Folha - No livro, os personagens têm histórias separadas que se cruzam. Foi difícil essa edição?
Barry - Num primeiro rascunho, tinha todos esses personagens e situações que não se encaixavam. então reescrevi e reescrevi até que as histórias se intercalassem de maneira que me autorizasse a me descrever como escritor.

Eu S/A
Autor: Max Barry
Editora: Record Quanto: R$ 39,90 (352 págs.)

Fonte: Jornal Folha de S.Paulo, 16/08/2005